21 de mar. de 2014

Senna não é Pelé

Dos mortos só se fala para falar bem.
(Ditado romano)

Em 2014 se comemora vinte e um anos da última conquista de Ayrton Senna no automobilismo: o vice-campeonato na temporada de 1993 da Fórmula 1. É tradição brasileira desdenhar os segundos lugares. O Vasco da Gama, numa matemática duvidosa, é ridicularizado como campeão de vices campeonatos. Perder uma final de Copa do Mundo equipara-se a uma tragédia nacional. Receber uma medalha de Prata Olímpica, salvo em esportes individuais, é uma gloria relativa. Ainda na F1, o bom piloto Rubens Barrichello tornou-se uma piada, mesmo tendo conseguido o difícil feito de ser vice-campeão duas vezes pela Ferrari, em 2002 e 2004.
Curiosamente, no caso de Ayrton Senna não há espaço para humor. No imaginário popular, seus vice-campeonatos ou foram resultados de roubos descarados ou superioridade esmagadora do equipamento do adversário. Não se admite outras variáveis. O status heroico de Senna é tamanho que tudo que o envolve ganha dimensões sobre-humanas, mesmo a eventual impossibilidade de conquistar o primeiro lugar.
Esse culto a sua personalidade ganhou reforço na campanha de lançamento do documentário inglês “Senna”, dirigido por Asif Kapadia e lançado em 2010. Fui assistir ao filme com baixa expectativa. Esperava uma patriotada melodramática, acrítica e laudatória, como a média dos produtos ligados à marca. O cartaz de divulgação era temerário: abaixo do título lemos “o Brasileiro, o Herói, o Campeão”. Prognosticava um “Globo Repórter” em película. O fato de ser um longa-metragem sobre um piloto brasileiro, dirigido por um pouco experiente cineasta britânico de origem indiana, que admitiu conhecer pouco de Fórmula 1, não ajudava.
Para minha grata surpresa, o documentário é muito bom. A edição criativa utiliza apenas material de arquivo. Evitou-se o caminho fácil da inclusão daqueles muitas vezes anacrônicos depoimentos ao estilo “eu me lembro”. A trilha sonora, a cargo de Antonio Pinto, é um dos pontos altos da produção. Conduz brilhantemente o espectador pelas cenas, construindo climas, alternando-se de forma eloquente com o ronco dos motores. Para decepção de muitos fãs, o maestro teve o cuidado de não utilizar o “Tema da Vitória”. Foi uma boa ideia, considerando sua vulgarização pela TV. Ademais, sendo uma produção internacional, não fazia sentido incluir uma idiossincrasia conhecida apenas no Brasil.
O filme, sim, é apologético, mas nada exagerado. Louva seu protagonista sem endeusá-lo. Mostra um homem multifacetado, consciente do papel que desempenhava no imaginário mundial e, particularmente, brasileiro. Um atleta obstinado em alcançar a perfeição em seu esporte. Ambicioso, procurava aperfeiçoar-se sempre e quebrar recordes. Sua disciplina era espartana. Muito cuidadoso no trato com a imprensa, soube construir de forma meticulosa uma imagem pública de bom-moço, de homem de família. Sua religiosidade genuína sempre foi destacada. Ao mesmo tempo, o longa revela aspectos obscuros de sua personalidade: o quanto era orgulhoso, fanatizado e irritadiço. Não esconde que o piloto de gênio era também uma pessoal banal, desinteressada por cultura, dono de uma infindável coleção de superficiais frases de efeito, proferidas com a solenidade de quem fala verdades filosóficas definitivas. Curiosamente, essa face de homem comum falando para homens comuns aquilo que eles querem ouvir, sempre foi um dos alicerces de sua popularidade. Com habilidade, sem apelar para excessos de verborragia, deixando as imagens falar mais alto do que as palavras, Kapadia conseguiu tirar proveito desse lado “autor de autoajuda” de Senna, promovendo a identificação emocional imediata entre o espectador comum e seu protagonista.
Inteligentemente, o documentário evita tocar, ou aprofundar-se, em temas escorregadios. A vida particular do piloto é blindada. Seu primeiro casamento é ignorado, assim como suas “amizades” de infância. Nesse vácuo ganha destaque seus dois relacionamentos mais famosos, com a apresentadora Xuxa e com a modelo Adriane Galisteu. Apesar da presença de imagens captadas por câmeras caseiras, o Senna público prevalece sobre o privado.
Da mesma forma, o filme não polemiza sobre a veracidade de algumas lendas sennianas, como o “milagre da sexta marcha”, na qual o piloto teria vencido o GP Brasil de 1991 com a caixa de câmbio emperrada na sexta marcha. Mesmo mostrando que ao final da corrida o piloto desacelerou o carro, quase o parando, para pegar de um fiscal de pista uma bandeira brasileira, voltando a acelerar em seguida, atestando que ele tinha marchas fortes, o diretor não interfere na flagrante dicotomia entre imagem e locução. Deixa para o espectador tirar suas próprias conclusões, acreditar ou não na lenda. Ou talvez, como estava mergulhado na cultura brasileira, Kapadia emulou Nelson Rodrigues na conclusão de que, simplesmente, “o videotape é burro”.
Os mais cínicos poderiam defender que o documentário blinda Senna de julgamentos de valor, colocando-o acima do bem e do mal. Isenta-se de discutir se seu controverso estilo de direção era perigoso, suicida ou apenas arrojado. Não coloca em questão os episódios onde reagiu de maneira antidesportiva. Não problematiza, digamos, se sua atitude de garantir o campeonato de 1990 batendo na Ferrari de Alain Prost foi ou não tão repreensível quanto à mesmíssima agressão que sofreu do francês no ano anterior. Tudo isso é verdade, mas acredito que, consciente das expectativas de seu público, o diretor inglês trabalhou essa cena em seu aspecto puramente cinematográfico: trata-se da justa vingança do protagonista da trama que se desenrola na tela. Nada mais. Pura questão de ação e reação imagética. Mais do que biografia, é cinema.
Nada disso desqualifica o filme. Não são erros, são opções estéticas conscientes. Não se trata de uma cinebiografia não autorizada, interessada em desencavar revelações bombásticas. Não se trata de um tratado fílmico erudito sobre automobilismo, como o ótimo “A Era dos Campeões”. É, ao contrário, uma celebração. Considerando sua proposta básica, “Senna” é um documentário honesto e empolgante. Acredito que muitas de suas qualidades advêm do que inicialmente parecia ser um problema: seu diretor britânico de origem indiana pouco afeito à F-1. É bem possível que um cineasta brasileiro não tivesse o distanciamento político e emocional necessário para trabalhar o tema. Teria feito a patriotada melodramática, acrítica e laudatória que eu tanto temia. De posse do vasto material de arquivo que teve à sua disposição, Kapadia tratou Senna como um personagem com imenso potencial dramático e emocional, não como um mito intocável ou herói invencível.
Infelizmente, como era de se esperar, o filme foi vendido dessa forma no Brasil. Além do apelativo e ufanista slogan publicitário “o Brasileiro, o Herói, o Campeão”, lia-se acima do título uma frase do tricampeão de F-1 Niki Lauda, aparentemente pronunciada por ocasião do enterro de Senna, em maio de 1994: “Ele foi o melhor piloto que já existiu”. Contudo, Lauda mudou de ideia, considerando que anos depois afirmou que “por tudo que conquistou ao longo dos anos e por ter ficado mais tempo no topo é justo que Michael Schumacher seja considerado o melhor”. No melhor estilo “1984”, de Orwell, há aqui a reescrita da História: o esquecimento em prol da sacralização de uma versão mais conveniente ao mercado. Nesse cenário, lembrar que o “Tema da Vitória” foi composto para Nelson Piquet soa de péssimo tom. Além de herói e campeão, enquanto produto, Senna é mais rentável sendo vendido como o melhor de todos os tempos. Para boa parte dos sennistas brasileiros, principal público-alvo do filme, nada menos parece servir.
Os admiradores de Senna dividem-se em dois tipos básicos: os conscientes e os fanáticos, também conhecidos como “viúvas”. Os primeiros apreciam mais o automobilismo do que idolatram Senna. Costumam ser pessoas centradas e racionais. Sabem que Senna foi um gênio do volante, não era um semideus infalível. Os outros parecem acreditar que a principal razão da existência da F-1 foi fazer o Piloto do Capacete Amarelo brilhar. Lamentavelmente, o primeiro grupo é sufocado pelo segundo.
Brasileiro faz piada com tudo: das asas de frango nos bolsos de D. João VI ao avião que não voava de Santos Dumont, passando pelos travestis de Ronaldo até a surra que Maguila levou de Holyfield. Nada é sagrado. A grande e, talvez, única exceção é Senna, que foi elevado a condição de santo secular por várias gerações de fãs. É comum encontrar crianças que nunca o viram correr afirmando que Senna é seu ídolo, seu espelho, etc. Essa deificação de um atleta de um esporte elitizado, baseada em sua perseverança e hombridade, em um país conformista e cínico como o Brasil, famoso por seus macunaímas, heróis sem nenhum caráter, é um fenômeno sociológico complexo, que merece ser estudado com profundidade pela academia.
Considero particularmente intrigante a tendência das viúvas em interpretar a trajetória de Senna como se fosse um Evangelho Moderno ou a saga do herói, conforme apresentada por Joseph Campbell no livro “O Herói de Mil Faces”. Senna seria um ungido, iluminado desde a infância. Suas palavras são ensinamentos. O acidente em Imola, sua Paixão. Não admitem comparar a grandeza moral e profissional do ídolo com nada ou ninguém. Tratam-no com dois pesos e duas medidas, quando em paralelo com outros pilotos. Mesmo a extraordinária superação de Niki Lauda, campeão em 1975 que sofreu um gravíssimo acidente no Grande Prêmio da Alemanha de 1977, tendo grande parte do corpo queimado, e mesmo assim voltou às pistas para garantir o título daquele ano, e o de 1984, apequena-se diante das inúmeras provas de coragem de Senna.
Para as viúvas, uma vitória de outro piloto é apenas uma vitória, uma vitória de Senna é um triunfo. Uma volta rápida de outro piloto é apenas uma volta rápida, uma volta rápida de Senna é um grande feito. Uma ultrapassagem de outro piloto é apenas uma ultrapassagem, uma ultrapassagem de Senna é uma manifestação de gênio. Uma deslealdade de outro piloto é a deslealdade de outro piloto, a deslealdade de Senna é arrojo. Uma vitória difícil de outro piloto é apenas uma vitória difícil, uma vitória difícil de Senna é um ato de superação. A conquista de um título por outro piloto é apenas a conquista de um título, a conquista de um título por Senna é justiça divina.
Como ensinou Campbell e alguns evangelistas, um herói faz-se desde a juventude. Sinais, que podem variar de impressionar doutores no Templo até domar cavalos selvagens, anunciam o futuro épico. É sintomático que o filme de Kapadia começa com a apresentação do jovem Senna em uma prova de kart. Foi um vencedor por todas as categorias pelas quais passou. Porém, convêm lembrar que seus títulos conquistados na Fórmula Ford 1600, ou na F-2000, ou na F-3, não constituem feitos especialmente notáveis no universo da F-1. É comum entre pilotos de elite vitórias fáceis e sucessivas em categorias menores. Elas podem garantir testes, não necessariamente empregos. O festejado teste que Senna fez na Willians aos 23 anos não convenceu o dono da equipe, Frank, a contratá-lo. O mesmo Frank Willians que, em 1994, declarou que sempre desejou tê-lo em seu time, posteriormente disse que “meu sonho é ter Schumacher em minha equipe, pois ele é o pacote completo”. No circo da F-1 opiniões são fluidas, só nos restando analisar dados para definir opiniões. E é um dado estatístico que, mesmo para os padrões da época, Senna não foi precoce: o Rato Fittipaldi foi campeão pela Lotus aos 25 anos, na temporada de 1972.
Quando começou na F-1, na equipe Toleman, em 1984, o estilo de pilotagem de Senna era comparado aos do canadense Gilles Villeneuve e do Escocês Voador Jim Clark. Os três tiveram muito em comum, na vida e na morte. Principalmente, Senna e Clark. Muito habilidosos, gostavam de correr na chuva e eram excepcionais leões de treino. Colecionavam pole positions. Senna conseguiu 65 em 162 GPs. A média de Clark é um pouco melhor, tendo disputado 73 GPs e feito 33 poles. Com 25 vitórias na F-1, Clark também foi mais hábil que Senna em converter poles em bandeiras quadriculadas. O brasileiro converteu em vitórias apenas 29 de suas 65 poles. Villeneuve e Clark também morreram nas pistas. O canadense num acidente com sua Ferrari no GP da Bélgica de 1982, aos 32 anos. Ainda não havia sido campeão. O Escocês Voador faleceu com a mesma idade em 1968, numa prova de F-2 na Alemanha. Foi bicampeão nas temporadas de 1963 e 1965, pela Lotus. A equipe para qual Senna iria se transferir em 1985.
Como se percebe, ao contrário do que as viúvas pregam, a Lotus não era uma carroça. Era, sim, uma escuderia com tradição na F-1. O que relativiza o cartel de Senna em seu início de carreira. Em 1984 terminou em 9º lugar no campeonato, em 1985 conseguiu um 4º, repetiu o desempenho em 1986 e em 1987 ficou em 3º. Venceu, com a McLaren, em 1988. Ou seja: em cinco anos venceu um campeonato e teve um terceiro lugar. Fazendo uma comparação livre, Nelson Piquet, após estrear no meio da temporada de 1978 na pequena equipe Ensign, passou para Brabham em 1979 e ficou em 15º lugar, conseguindo o 2º lugar no ano seguinte e o título em 1981. Em 1982, um ano conturbado, caiu para 11º. Recuperou o título em 1983. Em pouco mais de cinco anos conseguiu um vice-campeonato e dois títulos.
Segundo a reescrita da história realizada pelas viúvas, Senna era dono de uma concentração de monge budista, foi o mais veloz dos pilotos, o supremo acertador e construtor de carros. O pioneiro do automobilismo brasileiro Chico Rosa, em entrevista para revista “Grande Prêmio”, apresenta uma opinião diferente: “O Ayrton era um cara que tinha coisas excepcionais, mas não era um piloto completo. Considero que, entre os pilotos brasileiros, o mais completo foi o Nelson. E acho que o Ayrton foi muito menos completo do que o Schumacher. O Ayrton era imbatível em chuva e em classificação, mas tinha muitos defeitos em estratégia de corrida e um problema de desconcentração muito complicado. Concentrado, ele era um piloto. Desconcentrado, ele era um piloto qualquer. E tinha muito esse problema. Ele era um cara que se concentrava que nem um louco para fazer classificação. Por que ele ia bem nas classificações? Porque ele conseguia manter a concentração que exigia para ser rápido daquele jeito por um período de dez minutos, que eram duas voltas lançadas. Nisso, ele era absolutamente imbatível. Agora, ele não conseguia ficar guiando por duas horas com a mesma concentração. Ele foi um mau acertador de carros, nunca soube acertar, e não foi um bom estrategista. Agora, ele era muito rápido. Dava gosto de vê-lo guiar em uma classificação”.
Muito veloz em treinos, nem tanto em situação de corrida. Em seus 162 GPs, Senna somou 19 voltas mais rápidas. Seu antecessor no estilo aguerrido, Jim Clark, teve 28 em seus citados 73 GPs. Prost, muitas vezes considerado excessivamente cuidadoso, fez 41 em 202 GPs disputados. Piquet fez 28 em 208, enquanto Mansell cravou 30 em 191. O argentino pentacampeão Fangio conseguiu 23 em 52 GPs. O austríaco Gerhard Berger possui duas voltas mais rápidas do que o amigo brasileiro, 21 em 210 largadas. Michael Schumacher, ainda em atividade, conta, atualmente, com 76 na carreira. Em todo caso, as viúvas não gostam muito de matemática.
Tornou-se prática comum entre as viúvas falsear deficiências reconhecidas pelo próprio piloto. Como citado por Chico Rosa, sempre foi notória a falta de habilidade de Senna no acerto dos carros. Em entrevistas para a revista “Playboy”, de abril de 1988, Nelson Piquet ironizou o fato. Disse que na McLaren ele poderia se sair bem “porque, finalmente, encontrou alguém para acertar os carros para ele”. Refere-se ao Professor Prost. Os mais afoitos desdenhariam o falastrão Piquet, dizendo que se tratou de mera provocação. Esquecem ou não sabem que Senna, à contragosto e medindo as palavras, admitiu a acusação. Em entrevista para a mesma revista, publicada na edição de agosto de 1990, a repórter Mônica Bergamo perguntou-lhe: “Seus adversários diziam que ele (Prost) acertava o carro, e você vinha na cola, aprendendo. Era assim?”. Hesitante, Senna respondeu: “Eu tinha que aprender com ele, que é experiente e conhecia a McLaren”. A essa altura, entre 1988 e 1989, Senna estava longe de ser estreante. Se fosse um acertador inato já teria demonstrado na Lotus ou mesmo na Toleman.
O mito de que Senna era um profundo entendedor da sofisticada mecânica dos bólidos da F-1 é também improcedente. Para constatar isto basta recordar a célebre polêmica que travou com os engenheiros da Lotus em 1986, quando afirmava que o chassi do carro era o melhor da F-1, mas o motor Renault era ruim. Em 1987, a equipe passou a usar motor Honda e o rendimento do carro diminuiu em vez de melhorar. A constatação final foi a de que, na verdade, o problema era no chassi. Outro dado: durante seu contrato com a McLaren, era prática comum Senna tirar férias exatamente no período de desenvolvimento dos carros. Na Willians, essa dificuldade ficou ainda mais evidente. Em setembro de 2000, Osamu Goto, antigo chefe da Honda, deu uma entrevista para a revista “Autosprint”, onde comparou Senna e Prost: “O Ayrton Senna era um piloto espetacular, dono de uma habilidade impressionante e sabia como tirar o máximo daquilo que podíamos oferecer a ele. O Alain Prost era, também, excelente e podia sempre nos dar algo a mais do que oferecíamos a ele”.
Apesar de dono de verdadeiras “voltas de placa”, Senna não foi perfeito. Cometeu erros tacanhos, dignos de Mansell em seus piores dias. Desatento, bateu sozinho no guard rail enquanto liderava o GP de Mônaco de 1988. Enroscou-se em Gerhard Berger e Riccardo Patrese logo na primeira curva do GP Brasil de 1989, perdendo o bico do carro e ficando três voltas atrás. Confessou: “Coloquei a segunda marcha rápido demais”. Deixou o carro morrer na largada do GP Brasil de 1988. Repetiu o erro no autódromo de Suzuka, no Japão, quase deixando o primeiro título escapar. Conseguiu sair em 15º lugar, pegando no tranco, porque a largada ficava em uma descida. Ganhou posições aproveitando-se da chuva que começou a cair. Curiosamente, sua recuperação fantástica revalorizou o erro, o ressignificou como elemento de dramatização do triunfo. No documentário, Kapadia soube explorar muito bem isso.
A fórmula de construção do herói exige que seus feitos sejam propalados como únicos. Porém, como é comum, também no caso de Senna, muitas de suas façanhas foram repetidas ou melhoradas por outros pilotos. O triunfo em Suzuka não foi inédito. Em 1983, o irlandês John Watson venceu em Long Beach, após sair em 22º lugar. Rubens Barrichello venceu em Hockenheim, em 2000, largando em 17º lugar. Mesma posição na qual saiu o finlandês Kimi Räikkönem no Japão, em 2005. Mesmo o “da sexta marcha”, para quem acredita, foi emulado por Schumacher que, com o câmbio travado na quinta, percorreu 42 voltas do GP de Barcelona de 1994, chegando em segundo.
Diante dessas informações, não raro as viúvas alegam que as condições com que Senna realizou seus grandes feitos foram mais adversas. Duvidoso. Também costumam afirmar que o brasileiro sempre foi prejudicado pelo regulamento. Essa é uma meia verdade. É importante lembrar que a F-1 é um esporte legalista. Saber pilotar com o regulamento no bolso pode ser um fator decisivo. Senna foi beneficiado em 1988, quando fez 94 pontos contra os 105 de Prost, em números absolutos. Sagrou-se campeão devido a extinta regra do descarte dos piores resultados, somando ao final 90 pontos contra 87 do francês. No campeonato seguinte, uma decisão legalista ao extremo tirou-lhe uma vitória soberba; e o título. “Dura lex, sede lex”. Prost sabia o que estava fazendo quando correu para a cabine de direção da prova, após o choque das McLaren. Naquele momento, era mais um advogado do que um piloto. Não estranharia se estivesse de toga por baixo do macacão e peruca branca sob o capacete. Deve ter se lembrado da máxima “aos amigos tudo, aos inimigos os rigores da lei”.
Realmente, Senna não se dedicou a fazer amigos no Circo da F-1. Berger, para quem deu uma vitória de presente no GP do Japão de 1991, foi uma exceção. Era considerado desleal pela maioria de seus contemporâneos. As viúvas costumam interpretar essa antipatia como inveja. Uma inveja ao estilo daquela que Salieri teria nutrido por Mozart, conforme vista no oscarizado filme “Amadeus”. Historiadores confirmam que, na verdade, Salieri, que foi professor de piano de Beethoven, ajudou como pôde o promissor novato Wolfgang, quanto ele chegou à corte de Viena. Da mesma forma, parece-me pouco provável que figuras consagradas como Prost e Piquet tivessem motivos para invejar um jovem piloto que ainda tinha muito o que provar. Em sua entrevista para “Playboy”, Piquet mencionou que “no dia em que o Prost e o Senna estiverem disputando um título, por exemplo, todo mundo vai dar preferência (nas ultrapassagens) para o Prost, porque o Senna sempre sacaneaou todo mundo”. Numa entrevista de 1988, publicado no livro “O Circo e o Sonho”, de Nice Ribeiro, Nigel Mansell mostrou-se indignado após ter sido fechado por Senna no GP Brasil: “Sou profissional, recebo para desenvolver um trabalho, não para bancar o louco, desrespeitando a ética das pistas e pondo vidas em risco. Com o Prost, o Rosberg e os outros, a competição sempre foi limpa e honesta. O Senna, pelo contrário, demonstrou que quem tentar superá-lo será colocado para fora da pista. Acho que quem compara o Senna com o Gilles Villeneuve insulta a memória do Gilles, um esportista brilhante e leal”.
Enredados em seu fanatismo quase religioso, é difícil para as viúvas conceberem que Senna não é unanimidade entre fãs de automobilismo ou especialistas na área esportiva. Em 2000, a revista “Isto É” promoveu a seleção do Esportista do Século. Inicialmente, a redação organizou uma enquete com 30 notáveis, que selecionaram aleatoriamente, sem qualquer restrição de período de atuação ou categoria esportiva, os maiores atletas brasileiros de todos os tempos. Senna figurou em 28 listas. Foi esquecido por dois dos votantes. Em todo caso, a lista preliminar foi levada à votação popular e Senna sagrou-se vencedor da enquete, com 87,62% dos votos. O segundo colocado foi Pelé, com 80,75%.
Curioso notar que Pelé foi a única unanimidade no colégio eleitoral, sendo citado em todas as 30 listas. Perdeu para Senna na votação popular como perdeu para Maradona na eleição via internet para eleger o maior jogador do século, promovida pela Fifa. O primeiro caso é compreensível, considerando-se os fatores emocionais envolvidos, o fim trágico do piloto, a força do Instituto Ayrton Senna, etc. O segundo só demonstra a desinformação dos votantes.
Alguns pilotos chegam a certo nível de excelência que se torna quase impossível medir o real alcance de seu talento. Talvez Senna seja mesmo o melhor piloto de todos os tempos, se fatores do imponderável forem colocados na balança. O que as viúvas precisam admitir é essa possibilidade de estarem errados em seus dogmas. Muita gente séria defende que o melhor foi Jim Clark, a despeito de ter sido apenas bicampeão. O tetracampeão Prost é um forte candidato. Os cinco títulos da lenda Fangio o colocam no páreo. A perícia de Piquet em desenvolver carros vencedores não pode ser ignorada. O estilo elegante de Stewart tem seus admiradores. Em termos de superação, Lauda parece ser imbatível. Os números de Schumacher são desconcertantes. Enfim, se existe diferença entre esses monstros é mínima. Gênio é gênio, ponto. O eleito para o trono do automobilismo fica ao gosto do freguês.
Mas o fato é que Senna não é Pelé. No futebol, a distância entre Ele e seus pretensos concorrentes é oceânica. Os defensores de Maradona, ao contrário dos de Senna, não possuem nenhum argumento sequer razoável. Fazem polêmica oca. Os números, os títulos, a habilidade com as duas pernas, o senso tático, estão a favor do Rei. Outros candidatos, como Cruyff e Beckenbauer, admitiram o óbvio. Parte da irrefutabilidade do reinado de Pelé é o fato dele ser ótimo ou excepcional em todos os fundamentos do futebol, sem, necessariamente, ser o melhor em nenhum. Citando as palavras do jornalista André Fontenelle, para revista “Placar”, “Pelé não foi o maior jogador de todos os tempos: foi outra coisa, porque a lista de tudo o que fez o põe em uma categoria à parte, acima de tudo. Os mortais que discutam entre si”.
Imagino que algumas viúvas, ressentidas por minhas colocações nesse texto, possam bradar que eu mesmo sou uma viúva do Rei. Na verdade, torço para que alguém o supere e eu possa estar vivo para ver. Enquanto isso, considerando que Pelé morreu em 1978, só restando um cavalheiro chamado Edson, considero-me uma viúva alegre. Achei, por exemplo, o documentário “Senna” muito melhor do que “Pelé Eterno”.
Ademir Luiz

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